Qual a nossa relação com o espaço? A serra do curral como elemento de cidadania em Belo Horizonte
Quarta-Feira, 10 de Março de 2021
Como o espaço pode ser significativo para uma cidade? Como ela pode aproximar a relação entre o meio habitado e seus moradores?

Preste a comemorar seus 123 anos de construção e permanência, Belo Horizonte, foi objeto de estudo, de reflexão, de narrativas e poesias, procurando compreender o processo de personificação de uma cidade moderna. Sedimentando, contudo, o vetusto Curral Del Rei e se deslocando da antiquada capital Ouro Preto, símbolo colonialista que o país buscava romper.

A nova capital foi planejada aproveitando a paisagem natural, em especial a serra que se projetava nos arredores do antigo curral. O projeto arquitetônico da cidade propôs traçados geométricos utilizando as mais modernas e refinadas concepções da arquitetura urbana positivista do século XIX, revelando por meio da cidade, todas as grandezas e belezas existentes em Minas Gerais, era para ser um exemplo, de higiene, exuberância e modernidade para outras cidades. Investia-se em um novo desenho semelhante a Paris e Washington, em razão da ordem republicana que se instaurava.

Ouro Preto não se enquadrava mais como ideal de capital, a nova concepção dos governantes e da elite mineira, com vistas à possibilidade de crescimento econômico, social e do espaço urbano, em razão do acidentado relevo e limitado espaço de expansão. Tinha-se como intenção, dissociar-se da antiga capital, representante do ambiente e modelo de vida antiquado, de forte relação com o passado monárquico, uma lembrança ou pedaço da história que pensaram deveria ser guardada.

Um corpo de especialistas foi convidado para o projeto, tendo como chefe da Comissão Construtora, Aarão Reis, engenheiro e urbanista paraense. O planejamento assentou-se numa perspectiva sanitarista, assim como um corpo humano deveria ser limpo e saudável, a cidade deveria trazer esse reflexo higienista, com base no Decreto de nº 803 de 1895. A cidade apresentaria, para a época, ruas largas, com vinte metros de largura e avenidas com trinta e cinco metros, capazes de atender o acesso rápido, Houve uma pesquisa para identificar o local ideal para estabelecer Belo Horizonte, de tal forma que representasse a força e a união das facções políticas e oligárquicas mineiras, juntamente à ideia de progresso com o novo. Encontrou-se o Curral Del-Rey, um pequeno povoado que teve como morador Francisco Homem Del-Rei, um antigo piloto da nau Nossa

Senhora da Boa Viagem, do Rei Dom João V. Ele licenciou-se para se aventurar na região mineira em razão das notícias de mineração e ajudou a construir.

O espaço foi considerado apto para o início do novo ciclo social, a serra imponente chamou a atenção, tonando-se motivo para fundar e fundamentar os novos ares republicanos, agradando igualmente, a elite mineira privilegiada com a mudança, pois se estabeleceria em uma parte residencial apropriada, de acordo com o zoneamento estabelecido no projeto de Aarão Reis, dividindo por regiões onde cada grupo social deveria se estabelecer. Como consequência imediata destruíram-se as casas e retiraram os antigos moradores, em prol da nova paisagem urbana.

A planejada capital foi construída sob o olhar incansável da Serra do Curral, que tinha como função ser o símbolo da cidade, o elo entre cidadão, cidade e espaço, tendo a via principal, Avenida Afonso Pena, ligando a cidade aos pés da serra, da rodoviária até o bairro Mangabeiras. A serra surge como simbolização, o ponto em comum de experiências tangíveis e intangíveis entre os viventes, como parte de sua identidade materializada em um conjunto de elementos no espaço, assim, tem-se a paisagem.

Considerada símbolo paisagístico de inter-relação e pertencimento entre pessoas e espaço, é interessante que esses sentimentos postos se mantenham, para isso, invocar institutos jurídicos, e perpetuar a relação intersubjetiva são necessárias. Os processos de proteção legais, tentam ampliar o contato da sociedade com o meio ambiente ao seu redor e promove a continuidade desse sentimento para as presentes quanto para as futuras gerações, evidenciando o reconhecimento a identidade.

Tamanha a importância da serra para a cidade mineira, em 1995 ela foi eleita pelos belo-horizontinos como símbolo da capital, anos antes em 1991 obteve a decretação do tombamento da serra como patrimônio, pelo Município e a nível federal como patrimônio imaterial pelo IPHAN em 1960. Apesar da força normativa a proteção legal não basta é precisa manter a aproximação o vínculo social com o meio, o que não se verifica ao longo do tempo com a evolução e crescimento urbano.

As transformações inevitáveis de uma cidade e principalmente de uma capital como Belo Horizonte, ao longo das década, trouxeram ampliação do espaço ocupado, adensamento populacional, a necessidade de promoção de uma urbanização condizente com as necessidades sociais. Outro efeito, também contingente a essa mudança urbana foi a verticalização, o aparecimento de grandes prédio, a derrubada de antigos imóveis.

A serra do mesmo modo foi transformada, boa parte da área com vegetação, animais silvestres, tem sido ocupada, por moradias, antenas, destruída por queimadas não naturais, desconfigurando a proposição inicial de mantê-la intacta e tutelada. Os reflexões da urbanização e verticalização da cidade também transformaram a Serra do Curral, o objetivo de construir a cidade aos seus pés e poder de toda cidade visualizá-la, se perde a cada edifício vertical que não permite que outras edificações com igualdade visualizem a serra, ou seja, em prol de investimento imobiliário a paisagem se perde, deixa de pertencer ao sentimento belo-horizontino.

Ao longo dessa perda de vista para a serra, surge interpretações, representações, significâncias, não que elas já não existissem, mas ao invés de convergirem para uma construção do sentimento de afeição e proteção da paisagem emanada pela cadeia de montes, tem-se algo inverso. A perspectiva muda, a relação com o espaço é questionada, a interação com ele é levada a dúvidas para entender o que ela representa para a sociedade, por que ela ainda está ali, quem teve a ideia de planejar a cidade sob esse ponto. Essas perguntas, decorrente das externalidades urbanas, levam a sociedade a romper com a memória, com o espaço e com a valorização paisagista de outrora.

A imagem da serra, tem sido esquecida, assim como sua salvaguarda social. A falta de pertencimento fez romper com o sentimento de defesa, fazendo-a esquecida, não deixando de estar na lembrança dos indivíduos que ali habitam, o que impele a transmissão histórica e simbólica para outras pessoas e futuras gerações. Deixa-la de lado é abrir a possibilidade para perdê-la, tal como, para muitos, perderam parte da sua história com a retirada do relógio no alto do edifício JK em 2019, um racha na história social com a perde de um símbolo social de mais de quarenta anos de existência e permanência.

A valorização da Serra do Curral, sua proteção e conservação, não depende do esforço exclusivo da lei, da vontade normativa ou de agentes políticos. É imprescindível a participação social, é para ela que todos os institutos estatais produzem efeitos, logo, seja o tombamento ou o estabelecimento de um plano diretor que regulamente a paisagem e a proteção de suas unidades paisagísticas, deve estar baseado na vontade social, daqueles que habitam e, interagem com essa complexidade paisagística.

De certo, a serra estará fixa imóvel, inalterada, é a sociedade que designará o quão importante ela é e será. Então, para você entender como isso funcional essa relação entre belo-horizontinos e a serra, como perceber sua relação com a paisagem da Serra do Curral, não deixe de contemplá-la uma vez, deixar a experiência demonstrar o quanto ela faz parte do pertencimento da história, da vida.


Fernando Barotti dos Santos é Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Graduado em Direito pela Escola Superior Dom Helder Câmara (ESDHC). Professor Assistente I da PUC-Minas. Advogado. Pesquisador do Grupo de Pesquisa MAPE. Pesquisador nas áreas de Filosofia do Direito, Hermenêutica, Direito e Memória, Patrimônio Cultural, Paisagem, Direito e Sociedade.